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Explosão de reclamações ao STF é sintoma do desrespeito à cultura de precedentes

O estabelecimento de uma cultura de precedentes inaugurada pela reforma do Judiciário de 2004, e imposta pelo Código de Processo Civil de 2015, ainda é um dever não cumprido pelos tribunais e magistrados brasileiros. E há um fenômeno concreto que comprova isso: a explosão de ajuizamentos de reclamações constitucionais, com a ampliação de seu cabimento.

A reclamação é o instrumento que permite ao Supremo Tribunal Federal preservar sua competência e garantir a autoridade de suas decisões, sempre que a corte for informada pelas partes de algum desrespeito ou descumprimento.

Entretanto, para um sistema que tem como norte a busca da segurança jurídica e da celeridade processual pela uniformização das decisões, o diagnóstico quanto ao uso da reclamação é desanimador. Trata-se da terceira classe processual mais numerosa aguardando julgamento no Supremo: exatamente 10% dos 21,9 mil casos no acervo.

Nos 334 dias somados em 2022 até sexta-feira (2/12), o Supremo recebeu 5.899 reclamações. A média diária é de 17,6 processos. Até hoje, apenas 2020 — o ano do início da epidemia da Covid-19 — foi mais movimentado. E esse volume processual todo é uma espécie de efeito colateral das transformações implementadas no Judiciário.

primeiro boom de reclamações, não à toa, ocorreu no ano seguinte ao da implementação da sistemática da repercussão geral, filtro recursal criado pela Emenda Constitucional 45/2004. De 2007 para 2008, o número de reclamações praticamente dobrou. E, em 2009, subiu outros 35%.

"Já houve uma grande efetividade das alterações (da EC 45/2004), mas nesses 18 anos não andamos como deveríamos ter andado em relação a efetividade, celeridade e respeito aos precedentes. Há necessidade de reforço de mentalidade. Infelizmente, isso é constatado pelo alto número de reclamações recebidas", disse o ministro Alexandre de Moraes, do STF.

A declaração foi dada na última quarta-feira (30/11), no evento anual sobre precedentes qualificados organizado em conjunto por STF e Superior Tribunal de Justiça. "Infelizmente, ainda há inúmeras decisões que simplesmente ignoram precedentes, como se não existissem. Temos de trocar a vaidade pela efetividade das decisões", disse ministro, também presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

No mesmo evento, o ministro Luís Roberto Barroso, também do STF, classificou a possibilidade de propositura ampla de reclamações contra decisões que contrariam pronunciamentos dos tribunais como a consequência prática mais importante da ascensão dos precedentes.

"Na medida em que se criam precedentes vinculantes, a grande vantagem é que, se a decisão não for respeitada, você pode, per saltum (pulando etapas), chegar ao STF para fazer valer a jurisprudência. Hoje já conseguimos reduzir o acervo de recursos. Mas agora estamos nos debatendo com a proliferação das reclamações."

Muitas vezes, a reclamação é o único caminho, como ressaltou o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin, ao destacar que mesmo as decisões da instância máxima do Poder Judiciário são desafiadas por juízes e tribunais.

"Há um dever não inteiramente cumprido pelos tribunais superiores na configuração do Judiciário estabelecida pela Constituição. Esse dever diz respeito à uniformização da prestação jurisdicional em âmbito nacional e à produção de confiança na Justiça", afirmou Fachin.

Implied powers

A reclamação é um instituto criado pelo próprio Supremo com base na doutrina dos poderes implícitos (implied powers), delineada na Suprema Corte dos Estados Unidos. Ela só veio a constar no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Constituição Federal de 1988 (artigo 102, inciso I, alínea "l"). Desde então, teve papel importante, por exemplo, na luta contra a censura.

Inicialmente, sua função era ajudar o tribunal a preservar sua competência e garantir a autoridade de suas decisões, mas a EC/2004 ampliou seu cabimento para ato administrativo ou decisão judicial que contrarie a súmula aplicável, ou que a aplique indevidamente. E outros ajustes foram feitos por meio do CPC de 2015 e dos regimentos internos das cortes brasileiras.

No espírito dessa discricionariedade que levou à criação da reclamação constitucional, o STF delineou seu uso ao longo dos anos. Ela não substitui o recurso, nem serve como instrumento para viabilizar o reexame de uma ação. Ela só pode ser admitida depois de esgotadas as instâncias ordinárias. E não cabe contra ato de ministro da corte.

Entre os ajustes mais relevantes estão aceitar a reclamação quando for necessário adequar decisão de corte à orientação firmada pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade e também discutir a observância do regime da repercussão geral.

E, em caráter excepcional, o STF tem usado a reclamação para esclarecer a extensão do conteúdo da decisão paradigma, no que se chama de "função integrativa", e ainda como instrumento de superação de precedente judicial ou para exercer um novo juízo sobre casos já julgados.

Essa ampliação de uso é, novamente, uma particularidade do Supremo. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já refutou o cabimento da reclamação para discutir a aplicação indevida de teses firmadas em recursos repetitivos. Há integrantes, como a ministra Assusete Magalhães, que inclusive defendem que essa posição seja alterada "a bem da aplicação e da gestão de precedentes".

 

Descumprimento vedado

Não é preciso ir muito longe para compreender a importância da reclamação constitucional no Brasil. Foi por meio dela que o STF garantiu, em dezenas de casos, o cumprimento da ordem de fazer audiência de custódia em todas as prisões do país. E preservou, em tantos outros, a competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes conexos, um precedente que vinha sendo sistematicamente violado pelos juízos criminais brasileiros.

Para a classe política, inclusive, a reclamação é um instrumento bastante útil. Foi com ela que o governador de Alagoas, Paulo Dantas, voltou ao cargo dias antes de ser reeleito. Ele havia sido afastado pelo STJ, no âmbito de um inquérito criminal. O STF, porém, entendeu que o afastamento violou precedente sobre foro por prerrogativa de função.

A reclamação foi muito importante também para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Foi por meio da Rcl 47.000 que sua defesa teve acesso ao acordo de leniência da Odebrecht que o implicou criminalmente e, depois, obteve os diálogos da "vaza jato" que escancararam os desmandos da finada "lava jato" em seu projeto de lawfare.

Um novo olhar

Para a ministra Rosa Weber, presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça, o cabimento da reclamação constitucional foi um dos pontos que impuseram um novo olhar sobre o tema dos precedentes vinculantes no Brasil.

Já a ministra Cármen Lúcia definiu esse instituto como "uma formulação engenhosa para fazer com que o precedente tenha a força de que precisa". Em tom bem-humorado, ironizou a tal crise da reclamação. "Seria bom criar, talvez por alteração regimental, o desabafo. Aqui, tem gente que não vem com reclamação, vem desabafar, vem dizer que não concorda, que o precedente não é bom de jeito nenhum", disse ela, aos risos.

Segundo o advogado e professor da UFPE Leonardo Carneiro da Cunha, a reclamação constitucional é instrumento de aperfeiçoamento e interpretação de precedente, mas também de controle. "Não é possível que um tribunal tenha poder de firmar o precedente, mas não de impor que seja seguido", disse ele no evento.

Na opinião do ministro Alexandre de Moraes, a proliferação das reclamações é uma questão que vai se resolver conforme o Judiciário brasileiro finalmente encampe totalmente a cultura de precedentes recém-criada.

"Os precedentes vieram para ficar. O importante é que possamos fazer um ajuste fino ao debatermos, para que os precedentes possam ser cada vez mais objetivos e específicos, para que não gerem dúvida. E reforçar nos tribunais essa mentalidade, para evitar que haja recurso atrás de recurso, reclamação atrás de reclamação, tirando a credibilidade do Judiciário", disse Alexandre.

Problema mais profundo

Para o constitucionalista Lenio Streck, o problema tem profundidade maior. "O grande número de reclamações e a falta de cultura de precedentes têm origem na falta de contornos precisos dos precedentes. Isso tumultua a jurisprudência e provoca medidas defensivas da parte dos tribunais, o que afunila o sistema. E o problema principal não é enfrentado. Fica-se na superficialidade. A desobediência aos precedentes não é causa. É consequência", argumenta ele.

"O que os tribunais fazem são 'teses', que não são precedentes. Precedentes nunca são feitos para o futuro. Só o Brasil é que tem essa noção equivocada. Pensam que podem fixar interpretações para o futuro. Ora, tribunais julgam o passado. O Legislativo é que cuida do futuro. No Brasil o erro é os tribunais quererem cuidar do futuro", completa Streck.

 

Fonte: ConJur